Molhando as Palavras

Blog de curiosidades, opinião, crônicas e afins.

terça-feira, agosto 22, 2006

Profissão repórter

Realmente está muito difícil viver no Rio. Depois do assalto a D'Orey na Linha Vermelha, uma mulher levou um tiro de fuzil na cabeça enquanto passava pela Linha Amarela. Por uma triste coincidência ela é esposa de um colega de trabalho e prima de uma amiga. Lendo a notícia no jornal, lembrei-me da semana passada, quando ia da Barra pro aeroporto e o motorista falou "Aí que é a Cidade de Deus". Olhei e fiquei pensando sobre a vida na favela. Nas centenas de pessoas que nada tem a ver com a violência e são obrigados a conviver com ela diariamente, ali, nua e crua. Imediatamente recordei dos tempos de estagiária no JB em que fui enviada para cobrir uma chacina de 13 pessoas na Vila da Penha, num domingo de sol. Ali aprendi o que é viver a margem. Ali pude perceber como a rotina banaliza a dor e a crueldade. Ali presenciei o auge da desigualdade social.
O cenário era de terror. Treze corpos entulhados há 12 horas dentro de uma combe abandonada numa ruela. Cheguei exatamente no momento em que os legistas retiravam os cadáveres e o espalhavam pelo chão aos olhos de quem passasse. O fedor era insuportável. Os mortos não tinham mais que 18 anos e estavam mutilados. Tive que chegar perto pra ver. Uma menina tinha um rasgo que ia da vagina até o umbigo. Outros haviam sido degolados ou estavam sem um dedo, sem a mão e com tiros pelo corpo. Nunca tinha visto nada igual. Não conseguia acreditar que um ser humano pudesse ser tão cruel com o outro. Minha vontade era de correr dali, mas tinha uma matéria por fazer.
Enquanto apurava os motivos da chacina, pessoas em volta gritavam pra que eu saísse da frente. "Deixa eu ver aí moça", dizia um. Era a hora do espetáculo. Parentes das vítimas eram chamados pra reconhecer os corpos. E a cada identidade revelada um show a parte acontecia. A impressão era de que aquela era a única hora em quem eles se sentiam importantes, olhados. Era a hora de chamar a atenção. Em silêncio, eu observava os desmaios, os choros e os berros de quem havia perdido um filho, um irmão, um primo, um marido e um amigo. Lembro-me de uma menina que aparentava ter no máximo 15 anos com um filho nos braços. Ela chegou por entre a multidão e reconheceu o marido apenas pelo pé pendurado pra fora do combe. Ele usava o tênis novo que ela havia acabado de lhe dar de aniversário.
Em meio o tumulto, enquanto o fotógrafo registrava tudo sob o melhor ângulo, eu tentava apurar com os policiais o que havia acontecido. O motivo: guerra travada entre grupo de traficantes rivais. Segundo eles, Elias Maluco, chefe do CV na época (2001), organizou um churrasco para comemorar a posse de um dos pontos de droga no Morro do Quitungo, área controlada pelo Terceiro Comando (TC). A fim de retomar o ponto, o TC armou a emboscada. Invadiu o churrasco de surpresa e matou todos que estavam presentes. Para mostrar que haviam ganhado a batalha, o TC colocou todos os corpos na combe e os "devolveram" para o morro Caixa D'água (CV) de onde as vítimas eram moradoras. Devido a isso, a polícia afirmava que todos os mortos eram criminosos ligados ao tráfico.
Terminada a apuração no morro, fomos para a delegacia. Lá, passei por uma das situações mais difíceis, e de repente me vi também reconhecendo corpos. Estávamos aguardando novas informações quando uma mãe chega acompanhada da filha procurando o filho que havia desaparecido no dia anterior. Ela trazia uma foto do rapaz de boné, o mesmo que ele estaria trajando. Disse que o menino saiu de casa para encontrar a namorada num churrasco no Morro do Quitungo e não havia voltado para casa. Diante das coincidências o delegado contou sobre a chacina e informou que o filho poderia ser uma das vítimas.
Na posição de testemunha ocular, peguei a foto das mãos da mulher tentando me lembrar se em meio aqueles 13 cadáveres havia alguém parecido com o rapaz do retrato. Fiquei alguns minutos olhando para a foto pensando se seria capaz de dizer aquela mãe que seu filho estava morto. Não tinha certeza, mas o boné estava lá. Sem dizer nada, passei a foto pro fotógrafo. Afinal, ele ficou horas registrando todos os mortos. A sua opinião era a mesma que a minha, mas pela falta de certeza e de coragem, disse à mulher que não poderia identificá-lo. Aconselhada pelo delegado, ela foi até o IML. No dia seguinte da publicação da matéria tive a confirmação. Em outro jornal, lá estava a foto da senhora ao lado do relato indignado de quem havia perdido um bom filho, inocente, que nada tinha a ver com o tráfico.
Este foi o meu último plantão no JB. Nunca mais voltei a ser repórter. Mas até hoje agradeço à minha profissão por esta oportunidade: a de poder ver com meus próprios olhos o que é viver diariamente diante da morte, da violência, e da miséria, até então, sempre tão distante de mim. E que ainda hoje, às vezes, acreditamos estar de todos nós.

4 Comments:

  • At 9:49 PM, Anonymous Anônimo said…

    Nanda,
    estava lendo o seu artigo aqui no seu blog e achei muito forte.. por outro lado nao conseguia parar de ler, é oncrivel como você escreve bem e a gente fica "presa" a leitura! textinho muito bem escrito, fazendo a galera refletir!
    beijo beijos!

     
  • At 11:46 AM, Anonymous Anônimo said…

    Nanda,
    Você se superou. O texto está excelente e retrata de maneira direta e crua esse abismo em que vivemos e a impotência que sentimos. Fiquei com um nó na garganta, mas não me impediu de ler e reler.
    Bjo,

    Rafa

     
  • At 1:49 PM, Anonymous Anônimo said…

    Fernanda essa matéria tá show, como eu corro atrás desse caso, sera que vc tem fotos que possa me mandar, eu era vizinho das vitimas na época e nunca vi as fotos, se puder por favor me envie por e-mail
    hassendam@yahoo.com.br muito obrigado!

     
  • At 2:16 AM, Anonymous Anônimo said…

    Boa noite Fernanda.
    Meu nome é Felipe, e eu era amigo de uma das vítimas dessa chacina.
    Fiquei interessado em saber se o rapaz que disse que não tinha nada a ver com o tráfico, e que sua mãe foi com a filha tentar reconhecer seu corpo, era esse meu amigo. Pois pelo seu relato, parece ser muito o caso dele, então queria saber se vc estava falando da mesma pessoa. Até porque depois desse ocorrido, perdi contato com os familiares dele. Nunca mais tive notícias, e queria muito revêlos.
    Pode entrar em contato comigo para me responder?
    Meu e-mail: felipemali@hotmail.com

    Parabéns pela matéria. O texto está muito bem desenvolvido.

    Felipe

     

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